“Rio 40 Graus continua mais aguda e cirúrgica do que nunca”

Por Jairo Sanguiné

 

REVISTA 3SINAIS – Como aconteceu a concepção e gestação deste espetáculo? Aliás, “Cachorrada Doentia” é um show, teatro, perfomance, leitura dramática, ou um combo artístico?

FAUSTO FAWCETT – Sim, trata-se de um combo artístico, porque nesse show tem música, tem projeções e ainda a minha perfomance na falação das letras e muita história contatada. Portanto, tem um caráter teatral com aquela pegada de rapsósia, ou seja são histórias das letras das músicas…é como se você estivesse num cinema com dez histórias na tela sob um tema condutor ou variações sobre esse tema. No caso, os nervos “fora da pele” com os quais estamos nos defrontando todos os dias por ocasião dessa sensação de perturbação social que vivemos não só no Rio de Janeiro mas no Brasil e também no mundo. Por isso o show chama-se Cachorrada Doentia, que é uma expressão tirada da música Rio 40 Graus, que faz parte do espetáculo e traduz bem tudo que estou expondo. Aliás, essa música, concebida há mais de 20 anos, está mais aguda e cirúrgica do que nunca.

A gestação do show iniciou na apresentação que fiz no Parque Lage com o DJ Bruno Queiroz em dezembro de 2017, onde eu peguei parte da música Rio 40 Graus e enxertei personagens, como as damas do Big Data, e assim fui experimentando, o que acabou tendo um resultado bem interessante. Depois, no estúdio Áudio Rabel, em Botafogo, fiz duas apresentações com meus companheiros de longa data, os Robôs Efêmeros, e com participações de amigos especiais. Assim fomos rascunhando a idéia da Cachorrada Doentia e, em outubro a primeira parte já foi apresentada completa com uma mistura de música e poesia. Nessa função toda encontrei Fábio Caldeira e Gabriela Camilo,  um casal sensacional que tocam guitarra, teclado e ainda são designers. Em novembro  ensaiamos com o Laufer já na ideia dos três atos, agora com participação do Jodele Larcher, um dos pioneiros do videoclipe no Brasil, que é o responsável por todas as projeções do espetáculo.

R3S – Você sempre foi um cronista, seja em suas letras ou textos literários, do Brasil contemporâneo e tendo a realidade carioca como base. E hoje, com essa nuvem conservadora que paira sobre o Brasil e o ódio exposto nas redes sociais, isso te preocupa ou é um prato cheio para suas criações?

FF – Na verdade eu acho que a palavra “conservadorismo” foi completamente prostituída, transformada numa gíria de ataque e coberta de ignorância, porque na verdade ninguém sabe exatamente o que ela significa. Vinculam a palavra a comportamentos e costumes considerados retrógrados. Ou seja, toda rapaziada “startupada”, vegana, progressista não sei da onde, é também conservadora. E por que digo isso? Por que são todos puxadinhos de auto-ajuda. A auto-ajuda coloca, desde sua gênese ali nos anos 90 e início do século, que os obstáculos da vida ou as tristezas e coisas terríveis que pensamos no nosso dia a dia, devem ser vencidas para que possamos chegar numa espécie de céu de felicidade e de equilíbrio da vida. E nós sabemos que a grandeza da “Bíblia da Vida”, que vai de Shakespeare e Dostoievski, de Montagne a Freud, de Guimarães Rosa a Tolstoi, é calcada justamente no mal estar de todas as civilizações, na dúvida total na capacidade do ser humano se equilibrar, ou seja, suas sombras. É preciso, no entanto, conviver e lidar com essas sobras e não simplesmente evitá-las para alcançar algo. Toda essa turma alternativa, ou de forma mais geral, sustentável, está calcada nisso. Portanto, temos aí  um empate técnico entre esse conservadorismo “sustentável” e o outro mais tradicional. Forço um pouco a barra chamando de conservadorismo sustentável porque todos querem salvar todo mundo, ficarem felizes pra caramba. Basta ver essa “fofopatia” presente nas redes sociais. Ser “legal e fofo” virou desespero nas redes. Então, proteger as pessoas, higienizá-las, encará-las como metamorfoses ambulantes onde basta estalar os dedos que vamos virar outra coisa, é tudo uma maluquice para conservar o ser humano no seu aspecto de “incrível criatura”.

“As redes sociais viraram um megafone de todas as fúrias”

E o meu assunto nesse espetáculo é exatamente esse mal estar de todas as civilizações, seja a carioca, a brasileira ou a mundial, e essa tal nuvem que você fala, que está muito ligada a um conservadorismo caricato , na verdade acho uma preocupação completamente fake. As vezes uma pessoa ortodoxa pode apresentar algo bem mais interessante do que esse pessoal do café descafeinado.  Esse ódio que se vê nas redes sociais tem origem numa grande picaretagem daqueles profetas lá do início da internet, que afirmavam que agora estaremos livres, melhores, mais comunicativos e interativos . Mas na verdade o que aconteceu é que as redes sociais viraram um megafone de todas as fúrias, de todos os ressentimentos, loucuras e mesquinharias que existem nas pessoas.

O show, que inclusive vai dar origem ao meu novo livro, trata exatamente disso, do fundamentalismo, do radicalismo e dos mais variados fanatismos, que começaram na década passada nos EUA com grandes manifestações sem motivos claros, apesar dos filósofos e intelectuais de plantão quererem dar um motivo político, mas que na verdade eram apenas insatisfações gratuitas. E isso chegou ao Brasil em 2013, só que acharam que também tinha a ver com política, com uma suposta consciência de cidadania,  quando também  o que aconteceu foi um surto generalizado contra tudo e contra todos. E essa história de polaridade, de  “Nós” e “Eles” quem começou foi a turma que saiu do governo e que acabou gerando o seu contrário quando na verdade eram siameses. E agora as pessoas estão, verdadeiramente, sem chão. E, no Rio de Janeiro, assim como no Brasil. por toda uma situação de desleixo que vem de mais de 40 anos, vivemos numa mediocridade e as dúvidas e ceticismo continuam.

 

R3S – A Kátia Flávia dos anos 80 continua, 30 anos depois, uma louraça belzebu, provocante, gostosona e usando míssil na calcinha, ou o tempo a fez repensar o mundo? Como seria o perfil dela nas redes sociais em 2019?

FF – Kátia Flávia continuaria provocante, gostosona, claro, mas de uma outra forma, porque ela aguçaria mais ainda a visão de mundo dela. Ou seja, começou nos submundos de Irajá e Copacabana, mas creio que nesse tempo todo deve ter enveredado  por outras camadas sociais e hoje certamente estaria na China,  acionista de alguma grande empresa, tendo vários territórios econômicos e sociais na palma da sua mão. Estaria bem de acordo com o potencial de agressividade e de sedução daquela louraça.

Kátia Flávia estaria na China, acionista de grandes empresas e com centenas de perfis para confundir todo mundo”

No show, alguns personagens são as patricinhas vorazes, como era a Godiva do Irajá. Mas Kátia também certamente aproveitaria essa onda de sustentabilidade, de indústria do bem e de consciência social, porque isso dá a maior grana hoje em dia. Enfim, Kátia Flávia saberia lidar com esse mal estar todo e com o marketing do bem, e sempre andando no fio da navalha. Estaria na China e, com certeza, com centenas de perfis espalhados, confundindo todo mundo (risos)…