Conhecido pelo grande público como ator, o curitibano Guilherme Weber, que está no ar na novela das 19h, da Rede Globo, Pega-pega, como o personagem Douglas, mostra para o grande público uma faceta ainda pouco explorada, a de diretor de cinema. Com currículo extenso dentro do teatro e da TV, ele traz em Deserto (2017) uma visão artística marcante, única, de quem tem propriedade artística no que faz, e que pode ser vista a partir dessa quarta-feira (06/09) nos cinemas do país.
O longa tem em Lima Duarte o personagem chave para o desenrolar da história, onde um grupo de atores caminham em caravana se apresentando pelo sertão brasileiro. Ao chegarem em um vilarejo e o descobrirem abandonado, decidem ficar ali e fundar uma sociedade. Uma metáfora sobre os papéis sociais assumimos socialmente, muitas vezes por obrigação.
Antes da estreia nacional ele concedeu entrevista para nossa revista e fala um pouco do projeto, de arte e do que quis trazer à tona em Deserto.
“A história de um grupo é sempre a história de um mundo”.
De onde vieram suas referências para criação do filme? Como você chegou em “Deserto” e na criação do roteiro? Como se deu este trabalho?
A febre primeira, como digo, foi a leitura do romance mexicano Santa Maria do Circo. Naquela história encontrei o ponto de partida para o filme que eu queria fazer. Então a partir daquela primeira impressão escrevi o roteiro de Deserto. Mais do que um processo de adaptação, a criação de uma nova história, sobre os atores e sobre o Brasil. Saiu o universo circense do livro e entrou o meu universo e paixão, o teatro. Uma frase que li em algum lugar foi a primeira inspiração, “A história de um grupo é sempre a história do mundo.”
Depois a ideia de colocá-los no sertão brasileiro, o complexo mais renitente de nossa cultura e imaginário. E de uma maneira muito íntima, uma reflexão sobre a ocupação de uma cidade e através dela, a alegoria sobre a criação do Brasil. “Historicizar” nossas cicatrizes contemporâneas neste “western gótico beckettiano” como definiu o Rui Poças, nosso diretor de fotografia.
Eu não buscava um filme. Encontrei uma febre que nã
o me deixou mais. E sentia que esta febre não desaguaria em uma peça de teatro,
que seria o caminho mais natural dentro da minha carreira, porque precisava de realismo geográfico para acumular uma alegoria. Intuía que a simbologia exigida pelo palco poderia sufocar a fábula com símbolo sobre símbolo.
Você vem do teatro, passa pela TV e cinema, e dirige seu primeiro longa-metragem, como foi o processo?
O processo não é de etapas, mas de paixões acumuladas. O cinema foi minha paixão primeira, de garoto. O teatro se apresentou na minha vida como a possibilidade de realização de um ofício e depois, por muitos anos, ocupou o lugar central da minha trajetória. Fundidos os dois universos, a criação de Deserto. O cinema sempre olhou o teatro com uma certa desconfiança, quase como uma inferioridade intelectual. Talvez por ser tão novo frente à arte tão milenar. O teatro tem deuses, o que assusta. Mas o cinema tem heróis, o que é comovente. Da mesma maneira que o cinema libertou o teatro para o retorno a voos mais simbólicos, livres da obrigação do realismo, gosto de pensar que o teatro pode trazer um pouco mais de epicismo para o cinema, mais originalidade, mais dramaticidade e fantasia.
Das imagens divulgadas do filme me remeteu muito às obras de Fellini. Há algo de “felliniano” nessa trupe? Existe de fato essa referência?
Fellini. Um gênio tão grande que virou adjetivo. Conquista de muitos poucos, praticamente um gênero em si mesmo. Ele falava muito de atores, de saltimbancos, de perdedores, de eternas crianças, de desajustados. Então é inevitável que venha a mente quando estes personagens ganham a tela. Mas ele era um humanista e os personagens de Deserto não guardam esta característica. São bufões que falham em suas críticas, que sucumbem as suas ambições civis de classe média, fazendo da arena do filme, mais do que um deserto geográfico, um deserto de ideias. Mas internamente, em nosso diálogo pós-moderno (risos) falamos de Fellini. Lembro de pedir para Magali Biff, grande atriz do nosso teatro que faz em Deserto sua estreia no cinema, prestar atenção aos olhos de Giulietta Masina.
Deixar os atores com seus sotaques, com a pessoalidade regional de cada, seria como a reinvenção do país, por meio da ocupação de um vilarejo? Uma metáfora?
Sim, uma metáfora, uma alegoria, como é todo o filme. Mais do que deixá-los com suas regionalidades, escolhi-os por isso. Sempre quis que esta trupe representasse o Brasil em microescala. Seus sotaques foram fundamentais para isso. Atores curitibanos, paraibanos, paulistas, mineiros compõem a trupe de Deserto. E para liderá-los, queria um herói do cinema brasileiro, Lima Duarte, que chegou no set do meu primeiro filme para realizar o seu quinquagésimo com a vitalidade de um menino. O Lima liga Deserto à toda uma cinematografia brasileira.
Os atores lidam com arquétipos quase cotidianamente ao se proporem a ser outros, e nós em nossos papéis sociais, atuamos de forma similar. O filme tem uma readequação dos papéis sociais arquetípicos, como se dá isso?
Shakespeare já dizia, “O mundo inteiro é um palco e todos os homens e mulheres não passam de meros atores. Eles entram e saem de cena e cada um no seu tempo representa diversos papéis.”
Para os personagens de Deserto o que existe é a dubiedade entre representação e vida. Eles vivem o que imaginam ser o cotidiano da classe média. Ou talvez estejam apenas representando isto. Fica para o espectador decifrar o enigma dos bufões.
Em “Deserto” o simbolismo e a metáfora estão presentes nas cores, figurinos, enquadramentos… Pra você, como artista, como é lidar com os símbolos, dispô-los, e deixar que o espectador trace seu entendimento da obra? É diferente trabalhar os símbolos em teatro e no cinema?
O símbolo no cinema costuma se apresentar de maneira potente justamente por se situar em um universo mais realista, especialmente em filmes geograficamente realistas, como no caso de Deserto. O que é bastante original. O espectador faz também a diferença em suas leituras simbólicas. No teatro, o espectador está mais acostumado ao exercício da dialética, da projeção de símbolos e repertórios próprios. Em um debate no Festival de Brasília, por exemplo, uma jovem profissional de cinema, uma distribuidora, acusou o filme de racista e misógino, confundindo violentamente a voz dos personagens com a voz dos autores. Este tipo de confusão amadora é mais difícil no teatro.
Como você sente o mercado cinematográfico brasileiro frente ao cinema que vem sendo produzido por Vânia Catani e sua produtora, que produziu Deserto?
A Bananeira Filmes tem um projeto de produção de filmes autorais, por isso achava que era o lugar certo para a produção de Deserto. O cinema, não só o brasileiro, se divide em nichos e busca entender e também criar mercado a partir de nichos. E a maneira de ver filmes também mudou muito. Uma luta da produtora Vânia Catani é que se estabelece uma contagem diferente para o total de espectadores de um filme, não apenas levando em conta o número de ingressos vendidos nas salas de cinema. As salas de cinema são hoje, apenas uma etapa do encontro de um filme com seus espectadores.
Guilherme Weber diretor já tem novos projetos cinematográficos em vista?
Sim, estou trabalhando no projeto para um segundo filme, mas ainda bastante embrionário.
Deserto foi produzido pela Bananeira Filmes, da produtora Vânia Catani, umas das principais, senão a principal produtora de “cinema de arte” do país, se situarmos assim, o cinema feito por diretor e colaboradores focado na narrativa, na história, na forma de fazer, na ideia e não tão somente no desenvolvimento nas salas de cinemas, contabilização de espectadores e lucro.
Leia resenha e veja entrevista com Selton Mello sobre O Filme da Minha Vida.
Esse lugar no cinema nacional vem sendo explorado pela produtora em diversas obras, um dos lançamentos recentes é O Filme da Minha Vida (2017), com direção de Selton Mello, parceiro da produtora em diversos projetos. Vânia ajudou na estreia de atores/diretores como Selton Mello, com Feliz Natal, e Matheus Nachtergaele em A Festa da Menina Morta, e agora com Weber, que demonstra talento e ousadia nesta sua primeira incursão como realizador cinematográfico. Com Deserto, Weber segue o caminho das produções a serem aclamadas pela crítica e fazer sucesso com público internacional.