Solo de teatro documentário aborda a barbárie do feminicídio no Brasil e na América Latina

Por Assessoria

Gênero em ascensão nos palcos do mundo, o teatro documentário inspira-se em fatos reais, como estes: no México, a cada 3 horas, uma mulher é asfixiada, violentada e mutilada, enquanto no Brasil o tempo de consumação do feminicídio é ainda mais gritante. Aqui, a cada 1h30 uma mulher é vítima de violência masculina. Convidando o público a refletir a respeito através de uma história contada de forma multimídia, a atriz Luciana Mitkiewicz estreia dia 28 de junho, às 19h, o solo Desmontando Bonecas Quebradas, no Centro Cultural Justiça Federal. Sob a direção de Ysmaille Ferreira, a peça já foi apresentada em Londres (Latin American House/ 2018) e na Itália, nas cid ades de Nápoles, Rende e Roma (VAT, Cine-Teatro Santa Chiara e Suite Mondrian/ 2018). As sessões acontecem de sexta a domingo, às 19h, até 21 de julho.

Após cada apresentação de Desmontando Bonecas Quebradas será realizado um debate com o público presente e, nos dias 20 e 21 de julho, será oferecido um workshop gratuito sobre teatro documental exclusivamente para mulheres vítimas de violência de gênero (inscrição com carta de intenções para o email mitkiewicz.luciana@gmail.com). Também tem o mesmo workshop sobre Teatro Documentário aberto ao público em geral dias 27, 28 e 29 de agosto (inscrição idem).

A temporada vai até 21 de julho. Ingressos a R$ 40 e R$ 20. Sem patrocínio, a montagem participa de um crowdfunding até 8 de julho.

Composta por 17 cenas, a história de Desmontando Bonecas Quebradas entrelaça momentos de extrema poesia com notícias da vida real a partir dos acontecimentos de Ciudad Juarez, no México, fronteira com El Paso, no Texas (EUA). A dramaturgia é coletiva. Luciana Mitkiewicz explica: “A história de Ciudad Juarez é especificamente icônica. Desde 1993, contabilizam-se na região milhares de assassinatos de mulheres sem a devida punição. Uma situação sem precedentes, que levou, pela primeira vez na História, à condenação de um país – o México – na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2009. Desde então, são mais de 4 mil mulheres desaparecidas e mais de 2 m il mortas em Ciudad Juarez. Todos os crimes seguem o mesmo padrão: sequestro, violência sexual, morte por asfixia, perfurações corporais, esquartejamento e desaparecimento dos corpos”. Como conseqüência da condenação do México na Corte Interamericana de Direitos Humanos e a obrigação de um série de reparações aos familiares das vítimas, Ciudad Juarez tornou-se referência na medicina forense.

Aspecto de fábula _ “Por tratar de um tema tão urgente em nosso tempo, a peça sempre vem sendo acrescida e transformada por fatos, daí a ideia de fazer como um work in progress. Também é importante ressaltar o aspecto fabular, no sentido utilizado por Bertolt Brecht. É que ao olhar para Ciudad Juarez estamos tratando de algo muito próximo de nós, como o feminicídio. É uma forma de buscar as causas profundas desses crimes que se repetem de diversas maneiras em muitos lugares mas que tem raízes históricas que nos fazem entender que a violência contra a mulher é uma verd adeira violência de Estado. As causas não estão na relação do casal, não estão circunscritas ao espaço da casa, não se ligam aos assim chamados ‘crimes passionais’. Elas vêm de uma sociedade machista, patriarcal e misógina”, pontua Luciana Mitkiewicz.

Luciana é doutora em Artes da Cena pela Unicamp, desenvolve uma pesquisa sobre Imagem, Imaginação e Imaginário (Unicamp, Pacifica Graduate Institute e MISHA – Michael Chekhov Association), especificamente, em processos colaborativos de criação em teatro, foco de seu trabalho. Outros projetos realizados pela produtora são As Polacas – Flores do Lodo (texto e direção de João das Neves), O Chá (texto e direção de Luciana Mitkiewicz), Jogo Coreográfico (direção de Lígia Tourinho) e Bricolage, cartografia número 1 (direção de Isabella Duvivier).

Na infância, a atriz adorava quebrar bonecas, a ponto de transformar em nome de sua produtora (a Bonecas Quebradas Produções Artísticas) e em 2016 criar o espetáculo Bonecas Quebradas, matriz para esta desmontagem. Grande produção, o espetáculo contou com mais duas atrizes no elenco. Em 2015, graças ao apoio do Rumos Itaú Cultural, o grupo viajou para o México quando fez pesquisa de campo sobre o tema da peça. Todo o projeto culminou com o lançamento de um livro pela Editora Azougue e com a realização de duas temporadas seguidas na cidade do Rio de Janeiro, em 2016.

O que mudou de lá para cá? “Desmontando Bonecas Quebradas é um novo  trabalho teatral. Aqui, a peça vale-se do procedimento de criação e investigação artística conhecido como desmontagem, que é uma modalidade cênica que coloca a artista criadora no centro da obra, para uma conversa com o público sobre o percurso da imagem da boneca quebrada: dos primeiros devaneios infantis que eu tive até a descoberta dos casos de extrema violência contra mulheres em território mexicano. Enfatizando ainda mais a ponte com casos de violência extrema ocorridos no México e com agressões que praticamente todas nós mulheres brasileiras já sofreram”, situa. “Hoje, a realidade do B rasil e do México em relação ao feminicídio aproximaram-se vertiginosamente. Há um processo de juarização de todo o continente latino-americano, afirmam especialistas, como a antropóloga argentina, Rita Laura Segato, cuja entrevista consta no livro publicado após pesquisa em território mexicano. Virou uma peça-protesto”, define.

“Narco corrido” integra trilha sonora

Desmontando Bonecas Quebradas tem figurinos e cenário de Rodrigo Cohen. As trocas de roupa são feitas ao longo da peça, a atriz não sai de cena ao longo de 60 minutos. Sobre o palco, o espectador avista pequenas ‘ilhas’ formadas por objetos, delimitando territórios em que as cenas, que não têm ordem cronológica, se sucedem. A atriz interpreta várias personagens, como a miss Sinaloa, a delegada, a indígena. Ou seja, traz um mosaico das principa is figuras femininas dessa história particular para uma reflexão sobre as analogias que as causas profundas do caso retratado têm com acontecimentos na nossa sociedade.

Na trilha sonora do espetáculo se destaca um ‘narco corrido’ e o funk proibidão. É comum a exaltação de chefes do narcotráfico em canções no México também, daí a analogia com o ritmo nascido nas comunidades. Dentre as projeções feitas num telão ao fundo do palco estão imagens do filme “Narcocultura”, entrecortadas com imagens do tráfico de drogas no México e no Brasil, mas também depoimentos reais de suspeitos e da procuradora especial de Juarez, além do movimento das mães das vítimas, fundadoras da ONG Nuestras Hijas de Regresso a Casa. Luciana Mitkiewicz canta ao vivo “La Llorona& amp; amp; amp; rdquo;, em Nahuatl língua indígena ancestral mexicana.

Um dos muitos momentos emocionantes de Desmontando Bonecas Quebradas é a cena “Campo de Algodão”,  escrita pelo dramaturgo e diretor João das Neves, um dos mais importantes artistas do teatro brasileiro, morto em 2018. Enquanto apresenta o depoimento de uma mãe que perdeu a filha de 13 anos assassinada, Luciana espalha no palco bonecas feitas de fraldas de algodão, como se fossem sementes para fazer brotar novamente à vida as jovens brutalmente assassinadas.

“A verdade é que Juarez ficou conhecida como a cidade das mortas. Por isso, as autoridades de Juarez decidiram lançar vídeos promocionais e jingles festivos como os que exibimos ao longo da peça, para ‘limpar’ o nome da cidade, já que até hoje não conseguiram ou não quiseram pôr fim a esses assassinatos. O primeiro crime ocorreu em 1993, em meio às negociações para a assinatura do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), pelos EUA, México e Canadá. No ano seguinte, se instalam em Juarez as chamadas maquiladoras, as montadoras multinacionais de produtos têxteis e eletrônicos, atraindo milhares de mulheres de várias regiões do pa&am p;am p;am p;ia cute;s para trabalhar nessas fábricas, fosse por suas mãos menores e delicadas, úteis no manuseio de peças frágeis, fosse por seu temperamento mais dócil. As vítimas de Juarez são moças pobres, na maioria de ascendência indígena, trabalhadoras nas maquilas, no comércio ou em casas de família, jovens anônimas. “Vítimas de baixo risco”, como se diz tecnicamente nos manuais de criminologia”,  encerra Luciana.

Ficha técnica:

 

Idealização, criação e atuação: Luciana Mitkiewicz

Direção: Ysmaille Ferreira

Cenário e figurinos: Rodrigo Cohen

 

SERVIÇO

Desmontando Bonecas Quebradas – dramaturgia coletiva. Direção: Ysmaille Ferreira. Solo com Luciana Mitkiewicz.

Estreia dia 28 de junho, às 19h.

Dias e horários: Sexta a domingo, às 19h. Até 21 de julho.

Ingressos: R$ 40 e R$ 20.

Centro Cultural Justiça Federal – Av. Rio Branco, 241. Centro. Tel: 3261-2550

Lotação: 140 lugares

Duração: 50 minutos

Class. Etária: 16 anos