O ator Ney Piacentini  cria um diálogo improvável entre personagens de Machado de Assis e Guimarães Rosa,  no monólogo “Espelhos”

Quando Machado de Assis faleceu, em setembro de 1908, Guimarães Rosa era ainda um bebê de três meses. O primeiro, carioca; o segundo, mineiro da pequena Cordisburgo. Viveram em épocas diferentes, mas até hoje é possível buscar um diálogo entre suas obras. E é exatamente esse diálogo quase improvável que o ator Ney Piacentini leva ao palco do teatro Poeirinha, em Botafogo, com o monólogo “Espelhos”, que reúne personagens de dois contos homônimos –  “O Espelho” (do livro Papeis Avulsos, de Machado; e do livro Primeiras Estórias, de Guimarães). Leia mais sobre a peça.

 

 

 Foto Revista Metrópole

 

Revista 3Sinais – Machado e Guimarães viveram épocas diferentes. Um retratou a vida urbana carioca e o outro os sertões desse imenso Brasil. Como foi possível criar esse diálogo entre personagens tão distintos? Qual o ponto de ligação, o fio condutor desses diálogos?

Ney Piacentini – Há suspeitas de que Guimarães escreveu o seu conto como uma resposta ao de Machado. Que Rosa conhecia a obra do seu antecessor, isso é muito provável e ele ter colocado no papel um escrito com o mesmo nome, talvez não seja apenas coincidência. Sendo assim, o próprio Guimarães criou as correspondências entre os dois e, principalmente para dizer (pelo meu ângulo), que apesar de estarmos fadados a reproduzir o que tanto nos influencia, é possível, ainda que demore e seja exaustivo, encontrarmos algo de genuíno nesta vida. Coisa que Machado descarta com seu “O espelho”, visto que a figura por ele criada sucumbe à impostura, como é o caso do Brasil contemporâneo.

 

R3S – Você tem 40 anos de vida nos palcos. É professor, diretor, ator, tem vários prêmios… como vê o atual momento brasileiro para a cena teatral?

NP – Tenho pensado nos meus próximos projetos individuas, que poderão ter como chão a escassez. Nunca foi fácil fazer teatro em nosso país, que sequer educação conseguiu dar as suas cidadãs e aos seus cidadãos. Assim sendo, se até agora conseguimos produzir alguma arte precária e improvisadamente, daqui em diante teremos que nos virar com o que não existe. A pergunta maior é como inventaremos modos de contribuir para o atual contexto absolutamente desumanizador. Seja fazendo teatro, escrevendo ou dando aulas.

 

R3S – Fale um pouco dos 20 anos da Cia do Latão e seus próximos projetos.

NP – Lancei no Rio (30/01/19), em Belo Horizonte (09/12/18) e em São Paulo (28/11/18) o livro “O Ator Dialético: 20 Anos de Aprendizado na Companhia do Latão”. Apesar de resumir parte da história do grupo, principalmente sobre a atuação, há muito o que fazer. Em março vamos estrear um novo trabalho pra ser mostrado a céu aberto, linhagem ainda não experimentada o suficiente por nós. Podemos ainda reunir as últimas peças da companhia e constituirmos um novo repertório – que seria o nosso quarto conjunto de espetáculos. O Latão é, sobretudo, um lugar de estudos e inquietações que, para sobreviver, percebeu que aspirar ao profissionalismo poderia nos roubar do que nos é caro: não dependermos tanto de recursos externos para estarmos juntos para dividir com o público nossas visões de mundo.

 

Sobre Ney Piacentini

O ator e professor de teatro Ney Piacentini integra a Companhia do Latão desde a sua fundação em 1997, mas sua carreira vem de muito antes, 40 anos pra ser mais exato. Atuou em mais de 50 espetáculos. É um estudioso e pesquisador das artes cênicas, com mestrado e doutorado em pedagogia teatral pela USP. Escreveu Eugênio Kusnet: do ator ao professor e publicou Stanislavski revivido (org. c/ Paulo Fávari). É professor de interpretação na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e na Pós-Graduação da Faculdade Paulista de Artes (FPA). Por seu solo Espelhos foi indicado ao Prêmio de Melhor Ator de 2016 pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e integrou o conjunto que ganhou o Prêmio Questão de Crítica/RJ-2103 de Melhor Elenco por O patrão cordial (Companhia do Latão). Recebeu também o Prêmio Cooperativa Paulista de Teatro 2013 pela sua contribuição ao teatro paulista.