Banda carioca mantém a complexidade em “Memórias do Fogo”

Você também tem a sensação de estar morrendo aos poucos? Tem um tempo que o mal-estar tomou conta do Brasil e do mundo. Quem procura saídas, em geral, está confuso e bate cabeça. Então é preciso tentar ver a situação de outras formas para seguir em frente. Outros morreram antes de nós e apontam caminhos. Outros ainda lutam para serem ouvidos e não morrerem literalmente. Talvez precisemos aprender com eles, mergulhar no caos e encarar a morte, para ganhar de volta a vida.

Em 2012, o El Efecto lançou “Pedras e Sonhos”, disco em que eles se afastavam da ideia de banda de rock para desenvolver uma espécie de “música brasileira progressiva de protesto”. Um disco que exalava vida e exaltava a luta. Não chegou ao mainstream da ~cena independente~ (um pouco por vontade própria) mas teve impacto suficiente para concorrer ao tradicional Prêmio da Música Brasileira no ano seguinte. E durante a onda de protestos em junho daquele ano, foi alcançado pelo zeitgeist e inspirou cartazes pelo país todo. Eis que então a banda precisou suceder o disco que os colocou no mapa e enfrentar o clima macabro que se abateu, talvez especialmente no seu público.

Com “Memórias do Fogo” (2018) eles parecem dizer que a saída é aquilo ali no primeiro parágrafo. A banda vem com nova formação: Bruno Danton (voz, violão e viola), Eduardo Baker (baixo), Gustavo Loureiro (bateria), Tomás Rosati (voz, cavaquinho e percussão), Tomás Tróia (guitarra e voz) e Cristine Ariel (guitarra, cavaquinho e voz) – a adição de uma mulher é significativa por motivos que veremos a seguir. Mas musicalmente, o disco aprofunda o estilo “colcha de retalhos” em que o tipo de música sendo tocado importa menos do que o uso dado a ele.

Pra quem gosta de riqueza instrumental, é um prato cheio. Nos complexos arranjos, além dos citados, infinitas participações desfilam violino, violoncelo, clarinete, flauta, bandolim, trompete e mais. Pra quem gosta de decifrar referências em cada trecho de letra ou instrumento, é outro prato cheio. Mas os momentos de abundância dividem espaço com outros de calma, lentidão e quase silêncio. Frequentemente perdem. Por isso, talvez não empolgue tanto: estão presentes as ironias, as longas narrativas, as imagens elaboradas, a crítica e a inteligência, mas vieram em menor número as catarses.

Se “Pedras e Sonhos” começa com a vitória de Lampião sobre Eike Batista e termina com a vitória dos animais cantores sobre os barões, “Memórias” começa com uma insurreição reprimida e termina pregando um passo atrás. A primeira faixa, “Café”, opõe o bem-estar associado à bebida com a brutalidade na plantação do grão. Sucedem-se música latina e europeia, com uma bela transição e a participação da cantora Daíra, parceira de longa data.

Já “O Drama da Humana Manada” troca a dança dos sonhos, da segunda faixa de 2012, pela dança do trabalhador assalariado. Somos nós sentindo “a vida escorrer pela palma da mão”. Mesmo assim, o bom humor e a catarse comparecem com gosto – não à toa, foi escolhida a primeira a ser lançada. Samba com metal e pitadas de música árabe traçam uma linha “inevolutiva” partindo dos escravos egípcios. A dinâmica dos vocais atinge níveis absurdos para acomodar Marx, a voz do metrô carioca e uma fauna diversa.

Mantendo o pique, mas bem mais simples, o pagode baiano “Carlos e Tereza” celebra ícones rebeldes do passado através das datas em que foram assassinados pelos poderes de suas respectivas épocas. E quase sem dizer seus nomes, talvez pra incentivar a pesquisa. Um mecanismo contraintuitivo que reforça o pedido que se repete: “tu tem que lembrar”. Aos que apontaram caminhos, a promessa: “teu nome há de ecoar, que eu vou levar”.

“O Monge e o Executivo” é uma crítica carregada de ironia à apropriação de elementos da cultura oriental pela cultura da autoajuda neoliberal. A própria crítica é feita abusando de elementos da música oriental, em clima zen – além de um pouco de reggae. Perto do final, um rap traz referências históricas na letra e voz de Helen Nzinga, e introduz o que virá nas próximas faixas. Aqui a morte aparece como redenção, e o belíssimo final, pela guitarra de Gabriel Ventura, merece que se acompanhe a letra até o final dos mais de 8 minutos.

“Chama Negra” marca o ponto de virada do disco, e a abertura completa da banda de (até então) homens brancos às vozes femininas e negras que hoje cobram seu lugar mais do que nunca. Ainda em clima lento, faz uma ode às mulheres negras – à vida, finalmente – composta e cantada por Rachel Barros. É a contribuição do El Efecto a um setor da cultura brasileira que prosperou nos últimos anos, o cancioneiro feminista. Levada a violão e sopros, é um dos momentos mais abertamente emocionais e menos catárticos.

Na faixa seguinte, “Trovoada”, a banda ataca de afrobeat para questionar de que lado estamos, brancos, no conflito racial. Assumindo o controle, a convidada Nina Rosa canta: “Quem sempre falou, hora de calar” – um exercício que se mostra complicado de vez em quando. Em poema próprio, Ingra da Rosa enfia o dedo na cara e na ferida e arremata: “O povo foi forjado no caos / Diz pra mim, quem é que tem medo do caos? / Quem tem medo do caos é você”.

“Incêndios” encerra o disco com uma mistura dos últimos 4 segundos de “Cult of Personality”, do Living Colour, em looping numa bateria toda quebrada, com hardcore, terminando num tango. Não é das mais memoráveis, mas traz a mensagem principal, a conexão das dores individual e coletiva, e esse reconhecimento como saída para a vida que “mesmo desfigurada, ainda pulso e estende o braço”. Vamos direito ao final: “Desce até a origem das coisas, encara a ferida que liga a desgraça a você / Tece com raiva e paciência as tramas da fuga pra além dos pulmões do poder / Jura vingança ao massacre, cultiva a recusa e abraça aqueles que estão sempre a contravento em contramão”.

Ainda que nem sempre divertido, “Memórias” tem lugar garantido entre os melhores discos de 2018, até porque não tem mais ninguém tentando jogar nessa categoria. Que ele não seja no mínimo debatido em cada círculo de pessoas que se consideram “progressistas” ou “de esquerda” é um sintoma do buraco em que nos metemos. Batemos cabeça, o diálogo anda escasso. Quando a vereadora carioca Marielle Franco, uma das vozes negras femininas que cobrou seu lugar, foi assassinada pelos poderes de sua (nossa) época, vários reclamaram de não conhecê-la em vida. A comoção que se seguiu tornou-a mais uma rebelde a ser lembrada, a apontar caminhos.

Se “Pedras e Sonhos” surfou no zeitgeist em 2013, “Memórias do Fogo” vem para documentar o zeitgeist em 2018. Toda música “de protesto” no fundo é voltada para o futuro – sem se vislumbrar uma situação melhor, é no máximo música de resignação. Mas esse disco, desde o título, serve para lembrar desse e de outros momentos de incêndio. Para dar um passo atrás, encarar a desgraça, e então enfrentá-la.