O que fazer quando aquele que muitos consideram nosso gênio máximo lança um disco aos 73 anos? O procedimento padrão é ignorar o histórico e considerar o disco pelo que ele é – Chico Buarque não tem mais nada a provar e não vai entregar um produto menos que sofisticado. Mas e se a realidade nos agride de forma muito parecida com a realidade que cantava o nosso gênio quando foi declarado gênio? E se ele mesmo dá sinais de reação?

É claro que Chico Buarque é maior que o “herói da resistência”. É o que é por falar de todos nós e por todos (para todos?) nós brasileiros em um momento ou outro. E “Caravanas” (Biscoito Fino) tem mais mérito do que sugeriria uma aprovação automática. Mas não é o “Chico atualizado” que vendem. É um disco muito pessoal do senhor Chico Buarque, que por acaso muitos consideram nosso gênio máximo, refletindo a sua atualidade e tentando estabelecer um diálogo com ela.

As primeiras faixas, “Tua Cantiga”, “Blues pra Bia” e “A Moça do Sonho”, são o espaço burocrático do Chico romântico. As grandes letras, delicadeza, um ar jazzístico, prontas para cair em uma interminável playlist de Chico romântico. “Blues pra Bia” lança a primeira “ousadia” na letra: “Que no coração de Bia / Meninos não têm lugar / Porém nada me amofina / Até posso virar menina / Pra ela me namorar”.

A seguir, entra em cena o tempo e o disco começa a nos dizer mais. “Jogo de Bola” é uma beleza de lição em bossa de como encarar os efeitos do passar do anos: “Há que levar um drible por entre as pernas sem perder a linha”. “Massarandupió” faz uma ponte entre o presente e o passado em várias camadas. É uma parceria de Chico com o neto Chico Brown, que evoca a meninice na praia, com cara de música infantil.

Na bela regravação de “Duetos”, cantada com a neta Clara Buarque, Chico acena para a atualidade quando os dois listam sites e aplicativos: “Consta no Google, no Twitter, no Face, no Tinder (…)” É meio que uma curiosidade, mas casa com a letra. Ao contrário de outros gênios nossos, Chico não está com uma melancia pendurada no pescoço gritando “Eu sou relevante! Eu sou relevante!” Em “Casualmente”, um bolero que alterna português e espanhol, misturam-se o Chico romântico e o reminiscente.

Insanidade

Ao final, ele se rende à realidade que, às vezes literalmente, o agride. “Desaforos”, ainda que não seja uma canção particularmente memorável, dá uma boa zoada em coisas que acontecem nas redes sociais e “até mesmo nos restaurantes”, nas palavras do próprio. Dizia Umberto Eco que a internet promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade. E pra quem não lembra, Chico foi atacado por um desses num restaurante em 2015, por suas posições políticas.

Posições que aparecem com tudo na última e melhor faixa, “As Caravanas”. É uma crônica da repressão ao acesso de garotos suburbanos, “tipo muçulmanos do Jacarezinho”, às praias cariocas. Chico ironiza, cáustico e perplexo, a insanidade do insistente racismo velado da nossa “gente ordeira e virtuosa que apela pra polícia”. Com toda a seriedade do tema, não dá pra resistir ao sorriso quando nosso senhor sofisticado diz “que eles têm picas enormes e seus sacos são granadas”.

Finalmente o instrumental faz concessões. A leveza vai embora desde os acordes inicias do violão. Mais pra frente, a música praticamente ilustra a letra: disputam espaço o arranjo de cordas do maestro Luiz Cláudio Ramos e o beatbox de tamborzão de Rafael Mike, do Dream Team do Passinho. Os sons se alternam ao redor do violão tenso e se encontram apenas brevemente.

De bom tamanho

Mas se Chico quer dialogar com a atualidade, a atualidade não necessariamente quer papo com ele. Eus líricos a parte, o ponto de vista da faixa-título não disfarça, é um homem branco, hétero, da elite, ironizando seus pares. E mesmo o mundo das pessoas que leem sobre música não presta mais tanta atenção ou reverência a homens brancos héteros da elite, ainda que gênios. A própria “Tua Cantiga” gerou uma breve polêmica sob acusação de machismo quando lançada.

E mesmo que nesse mundo a ausência de resenhas negativas já tenha virado notícia, “Caravanas” não deve ir muito além. Hoje, a única música popular no país da MPB é a de balada-e-chifre, de acordes marcados e arranjo normatizado. No Brasil de Temer, não há nem resistência a ser cantada. A pátria mãe está acordada e ciente de que está sendo subtraída em transações a céu aberto. Que, além da sofisticação, Chico mantenha a capacidade de ironizar as insanidades, tá de bom tamanho.

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