Em tom de desabafo, atriz critica a gestão de Crivella, a política cultural de Bolsonaro  e diz que Cultura é socialização de conhecimento.  “O desmonte foi monstruoso”.

A pandemia do Corona vírus atingiu em cheio a área cultural, justamente o setor que menos recebe atenção do poder público apesar de gerar emprego e ser fonte de renda de mais de 5 milhões de brasileiros, de acordo com pesquisa do IBGE. Os números apontam para um retorno positivo do setor cultural na economia do país, pois ele é responsável por cerca de  2,5% do PIB, e as atividades culturais pagam R$ 10,5 milhões de impostos por ano. Mas mesmo assim, a cultura sempre fica para trás nos orçamentos e nos projetos dos governos.

Em 2020, com a pandemia, o setor cultural ficou em situação desesperadora, e longe do seu maior financiador, o público. O impacto foi gigantesco, acabando com praticamente todas as receitas que mantem os projetos culturais, principalmente os que dependem de presença de público. Teatros, cinemas e museus ficaram fechados por meses, grandes eventos como festivais foram cancelados. Mesmo diante de uma situação extrema como essa, o apoio do poder público foi quase nulo. Já antes da pandemia, por questões ideológicas, os governos federal, estadual e municipal relegaram o setor cultural a planos inferiores em termos de prioridade.

“Não esperávamos muito nem do ex-prefeito  Marcelo Crivella, muito menos do governador afastado, Wilson Witzel, mas não estávamos preparados para tamanha destruição”, diz  a atriz e Produtora Cultural da Companhia Ensaio Aberto, Tuca Moraes, que também responde pela diretoria executiva do Armazém Utopia, um galpão centenário de 5 mil metros quadrados com espaço múltiplo e dinâmico que sedia eventos culturais, como o Festival do Rio, o Rio H2K e o Tudo é Jazz no Porto, além de produções na área da música, da dança e das artes visuais. É onde também funciona a Companhia Ensaio Aberto.

“A cena teatral nacional estava destroçada antes da pandemia. O desmonte do Ministério da Cultura impetrado pelo atual governo federal quebrou a nossa espinha. No Rio de Janeiro talvez tenha sido mais rápido e violento porque não tínhamos suporte nem no governo estadual nem no governo municipal”, diz Tuca , que faz uma ácida crítica à atuação do ex-prefeito Marcelo Crivella na área cultural: “A gestão Marcello Crivella destruiu os teatros públicos. Demitiu os funcionários. A cultura não era prioridade. O desmonte foi monstruoso.  Assistimos passivos, quase incrédulos”.

Diante dessa situação desesperadora, em que editais públicos foram cancelados de uma hora para outra e as leis de incentivo, principalmente a Rouanet, foram tão demonizadas e criminalizadas que as empresas patrocinadoras sumiram, a diretora do Armazém Utopia diz que cada coletivo, cada artista, cada produtor, cada técnico, vai se virando como pode. “Com pouco, quase nada, porque, na verdade, nós artistas e produtores da cena teatral somos  bem acostumados a nos virar com pouco. E isso não é privilégio dos cariocas. Estamos muito distantes de “mamarmos nas tetas do governo”, como fomos acusados, desabafa a atriz, dizendo ter consciência de que a captação por lei de incentivo federal era muito centralizada, “mas estamos falando do Rio de Janeiro, que por estar situada na região sudeste, e ter sido a capital cultural do país, estava entre as regiões que mais captavam. É verdade também que a Lei Rouanet traz no seu DNA muitas contradições, mas é inegável que movimentava a economia da cultura”.

 Tuca Moraes em cena de “Missa dos Quilombos” (Foto: Peter Wery)

Fascismo não convive com o conhecimento

Assim como muitos artistas e produtores culturais, Tuca defende muitas reformas e correções de rumo na Rouanet, mas alerta que não se pode cancelar essa lei sem uma política clara para substituir o que ela fomenta na economia da cultura. E denuncia: “O fascismo não convive com o conhecimento. É o projeto do obscurantismo. Cultura é socialização de conhecimento.  E foi rapidamente criminalizada pelo governo fascista. E como bandidos fomos tratados. Por fim, a Lei Rouanet ainda existe, mas patrocinar projetos culturais tornou-se quase amoral”.

Segundo ela , a pandemia apenas acelerou a política que estava em curso. “Da noite para o dia nossa atividade foi de 100 a zero. E a cena teatral foi exemplar em sua atitude. Parou imediatamente e começou a se organizar para mostrar para a sociedade a importância do isolamento social como forma de salvar vidas”.

 Tuca Moraes, em “Que tempos são esses?” (Foto: Marcelo Valle)

Solidariedade de classe e Lei Adir Blanc

Tuca avalia que na classe artística a solidariedade tem sido enorme, e lembra que os que mais tinham ou alguma coisa tinham, doaram dinheiro para os que nada tinham. As entidades de classe  e associações  trabalharam fervorosamente para todos os trabalhadores da cultura. “Aqui rendo minhas homenagens a  APTR ( Associação dos Produtores Teatrais do Rio) que colocou comida na mesa de muitos trabalhadores da cena teatral carioca. O fascismo e a pandemia uniram a classe teatral, que se organizou em função do mais fraco, como deve ser. A “gente de teatro” voltou a se reconhecer como tal”.

A outra alternativa foi, segundo ela, buscar os auxílios emergenciais específicos. Ela lembra a incansável luta das deputadas federais do Rio de Janeiro, Benedita da Silva (PT) e Jandira Feghali (PCdoB), para aprovar a Lei Aldir Blanc, salvando muitos trabalhadores da cultura. “O nosso querido e gigante Aldir se foi com a pandemia, mas seu legado ficou também registrado nessa lei”.

Não há dúvida de que o ser humano não vive sem cultura, e a pandemia provou isso. Tuca questiona: “Qual sobrevivente, e temos que, especialmente no governo genocida do Brasil, nos considerarmos sobreviventes, atravessou essa pandemia sem a cultura adentrando em suas casas?”

 

Reinvenção e ressurgimento das cinzas

A produtora cultural afirma que a cena teatral teve de se  reinventar diante desse contexto, aos trancos e barrancos. “Não acho que o que fizemos, nas redes,  seja uma nova forma de fazer teatro. Teatro não é virtual. Talvez esteja nascendo uma nova linguagem, híbrida. Não é cinema. Não é teatro. Tem a comunicação fugaz das redes sociais. Isso não importa. Sobrevivemos. O Teatro sobreviveu e voltará aos seus inúmeros e diversos palcos para contracenar, para encontrar, presencialmente, seus pares, seu público, sua cena. O Teatro é a arte do encontro. Nossos mortos, nossa dor, nosso isolamento, nosso abandono estarão em carne viva nas nossas cenas. Iremos ao combate armados com as nossas derrotas. E teremos grandes vitórias. Tal qual a Fênix, ressurgiremos das cinzas”.

 

O teatro é um ato político

Questionada sobre a relação do público com o teatro hoje, Tuca garante que ninguém faz arte teatral sozinho. “Fazer teatro é necessariamente aprender a viver coletivamente, a conviver, a aceitar a diversidade. O teatro requer um público, coletivo, efetivamente reunido. É uma assembleia de atores e espectadores. O lugar do público reunido. E isso, em si, é um ato político. O teatro é uma atividade política”. Para ilustrar suas opiniões, ela cita o ensaísta, pesquisador, professor, dramaturgo e diretor francês Denis Guénoun: “O público dos teatros não é uma multidão. Nem aglomeração de indivíduos isolados. Este público quer ter o sentimento, concreto, de sua existência coletiva. O público quer se ver, se reconhecer como grupo. Quer perceber suas próprias reações, as emoções que o percorrem, o contágio do riso, da aflição, da expectativa. É uma reunião voluntária, fundada sobre uma divisão. É ao menos como esperança, como sonhos, uma comunidade.”

 

Isolamento e engajamento

A Companhia Ensaio Aberto, no dia 13 de março de 2020,  com o foyer lotado de público, cancelou a reestreia de A Mandrágora. O decreto de isolamento social tinha acabado de ser publicado no Diário Oficial do Estado. Maquiados e com figurino os atores da Cia foram ao público explicar a importância de todos irem para casa  e se manterem isolados o máximo possível. “Cancelar uma estreia é algo muito doloroso e dolorido. Mas para aquele público, que foi ao Armazém da Utopia nos prestigiar, era o melhor que podíamos fazer”.

Na semana seguinte o grupo estava engajado num comitê de crise, formado para tentar mitigar os danos do isolamento social na atividade cultural, conversando com o poder público numa tentativa de abarcar os trabalhadores, os espaços culturais, as diversas linguagens. Acreditando que o isolamento duraria 3 meses. “Já chegamos a 12 meses e, infelizmente, com pouca expectativa de retorno presencial, diante da política de morte do Governo Federal. Diante da negação à ciência. Nosso coletivo se reuniu e propôs fazer um pacto com a vida”.

Desde de março de 2020, o Armazém da Utopia/Companhia Ensaio Aberto manteve uma programação intensa e realizou diversas atividades gratuitas. Foram 6 oficinas, 5 cursos, 2 palestras, 2 seminários, 3 módulos de programas de estágio, 232 encontros de formação e criação artística. Estão em execução 3 livros , 4 cadernos de estudo e a pré-produção de 4 espetáculos. Tudo adaptado para plataforma digital. Foram mantidos 40 trabalhadores diretos e fora beneficiadas cerca de 1000 pessoas. “Não fizemos nenhum espetáculo on-line. Ainda. Temos um espaço incrível. Estamos guardando as novas produções para reabrir ao público o nosso Armazém da Utopia assim que todos estivermos vacinados e seguros. Assim o Utopia vencerá essa distopia”.