Com uma interpretação visceral unindo voz, gestos e expressividade visual, Elis deixou em êxtase o Festival em julho de 1979

Por Jairo Sanguiné / R3S

Com uma flor roxa no cabelo, saia vermelha e blusa roxa cintilante, cantando Cobra Criada (João Bosco e Paulo Emílio), há exatos 40 anos Elis Regina subia ao palco do 13º  Festival de Jazz de Montreux, que teve ainda Hermeto Pascoal fechando noite com uma participação surpresa de Elis, num momento antológico da música brasileira.

No mesmo dia, à tarde, Elis havia feito uma matiné, já que os ingressos para o show da noite estavam há meses esgotados. Nessa espécie de passagem de som aberta ao público, a entrega de Elis foi absurda, com uma interpretação visceral unindo voz, gestos e expressividade visual que fez estremecer o Festival com clássicos de sua carreira que receberam  arranjos de César Mariano com uma pegada jazzística até então inédita nas gravações da cantora. O resultado deixou em êxtase o exigente público de Montreux.

Leia trecho do livro “Elis, uma biografia musical”, do músico e escritor Arthur de Faria, em que o autor descreve esse momento histórico do Festival:

“A noite que seria dividida com Hermeto Paschoal, que, menos conhecido do que ela, estava no entanto em seu habitat natural:  um gênio da música instrumental, com uma banda extraordinária, num festival de jazz.  Para piorar, Elis soube que a plateia tinha, além de executivos de gravadoras e diretores de festivais do mundo inteiro, Chick Correa e Rick Wakeman […]

O Fato é que termina o segundo espetáculo e os aplausos são intensos.  Mas superados, duas horas mais tarde, pelos 15 minutos de aclamação a Hermeto (em várias publicações conta-se a história como se Elis tivesse fechado a noite, mas foi o contrário:  ela primeiro, Hermeto depois).

Sabe lá o que isso provoca na cabeça de duas personalidades como essas?

O melhor e o pior estavam por vir. Hermeto, já fora do palco, ainda recebia as palmas do último bis quando Claude Nobis, diretor do festival, viu Elis na coxia.  Ele chama Hermeto de volta, que vai sentado no piano para tocar um novo solo.  E aí, numa jogada de mestre, chama também Elis . […]

Era para ser apenas uma música.  Combinam qual já no palco, acertam o tom e Elis ainda comenta, com sotaque nordestino, enquanto Hermeto equaliza o piano elétrico conforme seu gosto.Fazem então o Corcovado mais cheio de corcovas da história.  Ela tira de letra, ainda que seus primeiros sorrisos sejam  amarelíssimos.  A forma como Elis volta para a segunda parte da canção depois do despirocadíssimo (e brilhante) solo de piano é um dos mistérios de Nossa Senhora de Fátima.

Tudo se encerra com um psicanalítico “falso” soco dado por ela na testa de Hermeto, que o recebe com um acorde igualmente tenso de piano.  Abraçam-se, e é visível o alívio e a sensação de missão cumprida quando ela, eufórica, lhe sussurra um inconfundível “filho da puta” pouco antes de saírem do palco aclamados pelo povo, que grita “mais um”. […]

Elis ainda abraçava o albino gorducho quando ele se desvencilha, sai correndo e volta para o piano.  Ela tenta segurá-lo, mas acaba indo atrás.

Segundo round.

O bruxo ataca uma levada pop meio baião, no ritmo das palmas que o público havia puxado.  Do nada, Elis sai cantando Garota de Ipanema.

Vai entender:  ela de-tes-ta-va a Garota, e havia jurado que jamais a cantaria.  Mas deve ter pensado na plateia de gringos e aí já estava mesmo dona do campinho.

Faz misérias com os andamentos, acentos e divisões da surradíssima canção.  Brinca com a letra em inglês, faz uma paródia ao jeito tatibitate-Astrud-Gilberto de ser, arrasa nas caras e bocas.  Até que Hermeto modula uma vez e outra, fica trocando insanamente de tom, e recoloca na cara de Elis o sorriso amarelo do início da jam.  Ela ganha tempo até reconhecer o terreno.  Numa rápida troca de olhares, retoma a canção, agora numa paródia de jazz singer.  Ele a interrompe com um acorde absurdo, cuja reação elisiana é um:

– Uaaaaaau!

A plateia ri de nervosa.  Ela também.  Hermeto, satisfeito, sai empilhando clusters, blocos de notas que não são exatamente acordes.  Vai começar um novo solo quando Elis aponta para a cabeça, chamando o foco de volta para si, e desembesta a cantar, novamente na primeira parte da música.  Hermeto toca o inferno por baixo.  E ela só sorri, dando-se ao luxo de redescobrir a sensualidade há muito esquecida da velha “Garota” descrita por Vinícius e Jobim.

Jogo virado. […]

Terminam o segundo número, abraçam-se já sem a mesma naturalidade e Elis puxa Hermeto pela mão para fora do palco, pulando.  Claude Nobs passa por eles, extasiado.  O público, ensandecido, sabia que tinha tido o privilégio raro de ver dois gênios num momento único.

Claude então os nomina mais uma vez.

A dupla volta para receber mais palmas e acaba decidindo fazer mais um número.

Na última arremetida, o bruxo cai como um carcará faminto em cima de uma indefesa Asa Branca.  Mas agora nada mais derrubaria Elis.  Nem mesmo o fato de ela só saber uma estrofe da letra.  Em sua segunda e definitiva entrada na canção, encerra a noite, carregando no sotaque do mestre de Lagoa da Canoa:

Entonce eu disse, adeus Héhrméétu… guahrde consigo…Todo meeeu co-ra-ção…

O saldo final não é um dos maiores momentos do festival. É um dos maiores momentos da música do século 20.

 

Livro:  ELIS:  UMA BIOGRAFIA MUSICAL de Arthur de Faria – Arquipélado Editorial, 288 páginas.